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Saúde mental a céu aberto: quando o cuidado encontra a rua

Saúde mental a céu aberto: quando o cuidado encontra a rua

Na tarde desta sexta-feira (16), o Largo do Mercado se transforma em palco de escuta, arte e cidadania. A segunda edição do Caps na Rua reúne usuários, profissionais e transeuntes em uma ação coletiva por visibilidade e acolhimento na saúde mental. Mas o evento é apenas a face mais visível de uma rede que resiste diariamente à exclusão, ao preconceito e à lógica manicomial.

Em entrevista ao programa Contraponto, Maria Cristina Barbieri, Rosiane Cardoso e Dariane Portela — profissionais da rede de atenção psicossocial de Pelotas — relataram o impacto e os sentidos do trabalho realizado nos CAPS. Muito além dos serviços pontuais, o que se constrói ali é um modo de cuidado que desafia o imediatismo e aposta no vínculo como ferramenta de transformação.

Uma cidade que já foi manicômio: a luta histórica por outro cuidado

Pelotas já abrigou três hospitais psiquiátricos. Hoje, tem apenas um — e uma extensa rede de CAPS que, aos poucos, ocupa um papel essencial na transformação cultural sobre a loucura. “A cidade era reconhecida nacionalmente como hospitalocêntrica”, lembra Maria Cristina Barbieri, que há quase 40 anos atua na área. “Nos anos 90, a gente começou a construir um cuidado comunitário, em liberdade.”

Essa história não é apenas sobre serviços: é sobre mudança de mentalidade. A reforma psiquiátrica, que se tornou lei em 2001, encontrou em Pelotas profissionais engajados desde antes, que panfletavam e criavam pontes com a população. “Foi um movimento social. Sempre foi. E precisa continuar sendo”, reforça Cristina.

O Caps na Rua resgata esse espírito. Ao sair dos prédios e ocupar a rua, os serviços voltam a dialogar diretamente com a cidade, enfrentando estigmas e reconstruindo relações. “A gente precisa estar onde as pessoas estão”, afirma Rosiane Cardoso, coordenadora do Caps Porto.

Entre pandemia, enchente e redes sociais: novos desafios à saúde mental

A pandemia forçou os CAPS a se reinventarem. Com os espaços vazios e as ruas silenciosas, surgiram as oficinas pelo WhatsApp, as ligações de acolhimento e a busca ativa por telefone. “O Caps é presencial, é corpo a corpo. Mas a gente precisou criar jeitos novos de cuidar”, conta Rosiane. E não parou por aí.

Em 2023, durante as enchentes, muitos usuários dos CAPS estavam entre os abrigados. “Foi um momento duríssimo. A gente teve que estar lá, ajudando no manejo, acolhendo quem se desestabilizou. E vimos o medo continuar mesmo depois”, relata. Vários atendidos hoje chegaram aos serviços naquela ocasião.

Além dos eventos extremos, a cultura digital e a superexposição também atravessam o cotidiano dos CAPS. As profissionais apontam o aumento de auto-diagnósticos nas redes e a medicalização da vida comum como fatores preocupantes. Rosiane explica: “As pessoas não querem mais sentir tristeza. Acham que qualquer angústia precisa de remédio. Mas sentir faz parte da vida. As falas das profissionais são unânimes: sofrimento não é, necessariamente, doença. Muitas pessoas chegam aos CAPS com dores reais — desemprego, luto, dificuldades familiares —, mas buscando soluções que não cabem em uma receita médica: “Às vezes a pessoa só precisa conversar. Mas nos procuram esperando uma cura imediata para situações que são sociais”.

Esse é um dos maiores desafios do cuidado em liberdade: oferecer um espaço de escuta e construção conjunta num mundo acelerado e impaciente. “O nosso trabalho é processual, interdisciplinar, não centrado no médico. Mas as pessoas chegam querendo um remédio que resolva tudo. E não é assim.” Quando conseguem se vincular ao serviço, porém, as mudanças são visíveis. “A pessoa começa a descobrir capacidades que nem sabia que tinha”, relatam. Mas muitos desistem no começo, antes de atravessar a arrebentação. Por isso, eventos como o Caps na Rua são tão importantes: eles criam primeiras pontes.

Romper o silêncio: quando a saúde mental se torna pública

Ao convidar a população para a rua, os CAPS não apenas prestam serviços — eles reivindicam cidadania para quem vive o sofrimento psíquico. Barracas de informação, apresentações musicais, oficinas e rodas de conversa se combinam para criar um espaço vivo e democrático. “É sobre se ver, se reconhecer, saber que a saúde mental existe e que o CAPS está ali”, resume Dariane Portela.

Mais do que uma ação pontual, o Caps na Rua é parte de um cronograma contínuo: uma vez por mês, cada unidade organizará um evento em seu território. O objetivo é claro: visibilidade, integração e combate ao preconceito. “O estigma ainda existe. Mas ele não é mais escancarado. Agora ele se disfarça na autoimagem, na autoestima, na vergonha de ser quem se é.”

Em meio aos desmontes e à precarização dos serviços públicos, a fala final de Maria Cristina ecoa como alerta e horizonte: “Precisamos da participação da população, inclusive nas conferências municipais, para ajudar a pensar os rumos desse cuidado. E precisamos formar profissionais com outra visão, desde a universidade.”

A formação de profissionais comprometidos com o cuidado em liberdade foi apontada pelas entrevistadas como uma das chaves para a consolidação de políticas públicas de saúde mental verdadeiramente transformadoras. Nesse sentido, os CAPS atuam não apenas como espaços de atendimento, mas também como campos de formação e resistência. O tema da formação, inclusive, será retomado em próximas edições do Contraponto, reafirmando o compromisso da RádioCom com a construção de uma cidade mais consciente, acolhedora e justa.

Serviço

Nome do evento: Caps na Rua – Segunda Edição

Data e horário: Sexta-feira, 16 de maio, a partir das 14h

Local: Largo do Mercado (Rua Lobo da Costa, entre Andrade Neves e 15 de Novembro)

Descrição: Ação promovida pela Rede de Atenção Psicossocial do município em alusão à Semana da Luta Antimanicomial. O evento reúne profissionais, usuários e comunidade em atividades de informação, cultura, escuta, panfletagem, oficinas e apresentações artísticas, promovendo o cuidado em liberdade e a valorização da saúde mental.

Acesso: Gratuito


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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