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“O que você faria no lugar da Fafá?”: jogo premiado ensina crianças pequenas a reconhecer e se proteger de abusos de forma lúdica

“O que você faria no lugar da Fafá?”: jogo premiado ensina crianças pequenas a reconhecer e se proteger de abusos de forma lúdica

O que você faria no lugar da Fafá? Com uma pergunta simples, mas poderosa, crianças pequenas são convidadas a refletir sobre situações delicadas de forma segura, guiadas por educadores e psicólogos. “Rua das Crianças Corajosas” é um jogo de tabuleiro que trata de temas como consentimento, segredos, toques e limites corporais com sensibilidade e criatividade. Criado pela designer Jésia Vunschel Gualter, o jogo já é usado em uma escola de Pelotas e chamou atenção internacional ao vencer o iF Design Award 2025, uma das mais prestigiadas premiações do design mundial.

O projeto, desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso no IFSul – câmpus Pelotas, foi orientado pela professora Mariana Piccoli e nasceu da vontade de transformar dor pessoal em ferramenta de cuidado coletivo. As autoras da iniciativa foram entrevistadas no programa Contraponto da RádioCom, onde compartilharam os bastidores de uma proposta que une pesquisa, coragem e função social.

Quem é a Fafá?

Fafá é uma personagem fictícia no jogo Rua das Crianças Corajosas. Ela aparece em cartas que descrevem situações cotidianas que servem de ponto de partida para o diálogo com as crianças. Em vez de perguntar diretamente à criança jogadora “isso aconteceu com você?”, o jogo apresenta histórias como: “A Fafá estava brincando na pracinha quando um estranho ofereceu algo para ela”. A partir daí, a criança é convidada a opinar: “O que a Fafá deveria ter feito?” ou “Você acha que ela agiu certo?”. 

Esse distanciamento — falar sobre uma “outra criança” — é uma estratégia pedagógica pensada com muito cuidado para evitar exposição, medo ou retraimento. Ao se colocar no lugar da Fafá, os pequenos conseguem expressar opiniões, dúvidas e sentimentos sem a pressão de falar sobre si mesmos diretamente. É também uma forma de revelar sinais de alerta que podem ser observados por professores e psicólogos.

Além de Fafá, o jogo traz outros personagens genéricos, todos com apelidos modificáveis para evitar associações com nomes reais. As situações retratadas nas cartas abordam tanto contextos negativos (como abusos ou invasões de privacidade) quanto positivos (como consultas médicas seguras e apoio na escola), sempre abrindo espaço para debate e construção de confiança.

Pesquisa, escuta e afeto: a construção do jogo

Mais do que uma criação de design, o jogo é resultado de um processo intenso de pesquisa, escuta e elaboração colaborativa. Desde o início, Jésia buscou apoio de professores da rede pública, psicólogos, e estudou profundamente os anuários de segurança pública para entender o perfil das situações de abuso e as melhores formas de prevenção.

O processo levou dois anos e envolveu revisões constantes. Foram criadas mais de 60 cartas de situações, cada uma escrita com base em notícias reais, depoimentos e recomendações técnicas. Durante a criação, Jésia passou por momentos emocionalmente desafiadores, ao ponto de precisar pausar o trabalho por questões de saúde. Para a orientadora Mariana Piccoli, o impacto pessoal foi igualmente marcante. “Foi o TCC que mais me fez chorar. A gente lia os casos e passava mal”, contou.

A equipe também testou uma versão piloto do jogo com crianças da Escola Upiá, em Pelotas. O retorno da aplicação foi essencial para ajustes e aprimoramentos. “Eles entenderam os conceitos, se envolveram com os personagens e queriam jogar mais”, lembrou Mariana. Esse processo de validação prática, aliado ao embasamento técnico e à escuta afetiva, foi decisivo para consolidar o potencial educativo e transformador do jogo.

Design com propósito: quando o jogo é assunto sério

Criado com linguagem visual simples e traços em preto e branco para facilitar a identificação pelas crianças, o jogo se passa em uma rua fictícia com locais do cotidiano como escola, hospital, pracinha e casa. Em cada espaço, cartas apresentam situações inspiradas em casos reais, sempre narrados em terceira pessoa. Não há certo ou errado no jogo — há espaço para discussão, escuta e aprendizado. Esse cuidado, segundo a criadora, foi fundamental. “A criança não precisa se ver diretamente na situação. Ela observa outra criança e consegue se posicionar sobre aquilo”, explicou Jésia. Esse distanciamento emocional torna possível que crianças compartilhem experiências sensíveis de forma segura, e também permite que moderadores, como professores e psicólogos, identifiquem sinais de alerta.

Além das cartas, o jogo inclui recursos como um painel magnético com representações corporais e fichas que tratam de temas como segredos bons e ruins, tipos de toque e redes de confiança. E a escola é um ponto chave dessa rede: “A escola é um dos principais lugares de denúncia e proteção”, destacou a professora Mariana.

Da sala de aula ao mundo: reconhecimento e expansão

O projeto foi testado e validado na escola montessoriana Ulpiá, onde permanece em uso. As entrevistadas contam que a professora responsável pela aplicação relatou que as crianças “adoram” o jogo e demonstram clara compreensão dos conceitos. “Eles sempre querem jogar mais. E dizem coisas como: ‘Não pode encostar no meu tico!’”, compartilhou Mariana.

Essa aceitação prática do jogo reforçou a intenção de expandir sua produção. Até agora, existe apenas um exemplar físico, criado para a defesa do TCC. Jésia e Mariana estão organizando uma vaquinha online para viabilizar a produção de novas cópias e atender à crescente demanda de psicólogos e instituições de ensino que têm entrado em contato com elas. A proposta também é disponibilizar gratuitamente os arquivos do jogo para escolas com menos recursos.

A vitória no iF Design Award, que terá cerimônia no dia 20 de junho em Bilbao, na Espanha, foi descrita por ambas como “surreal”: “É como se fosse o Oscar do design”, comemorou Jésia. Além deste reconhecimento global, o projeto também venceu o prêmio da Famecos/PUC como melhor TCC científico e conquistou prata no Prêmio Bornancini de Design Social.  

Coragem como matéria-prima

A escolha do tema, profundamente pessoal para Jésia, foi um dos maiores desafios do projeto. “Esse tema mexe comigo desde sempre. Mas eu aprendi a transformar isso em algo que possa ajudar outras pessoas. É isso que me move”, disse, emocionada. A orientadora relatou que o projeto foi o mais intenso de sua carreira. “Em 11 anos de docência, foi o TCC que mais me fez chorar”, afirmou Mariana.

Além das questões emocionais, o projeto também enfrentou as complexidades de trabalhar com um tema tabu. Por isso, a aplicação do jogo foi pensada para acontecer exclusivamente com mediação de profissionais qualificados, em ambientes educativos e acolhedores. A intenção é garantir que o tema seja tratado com responsabilidade e sem gerar reações negativas em ambientes familiares onde, infelizmente, muitas vezes o silêncio ainda impera.

A repercussão do projeto nas redes sociais tem ampliado sua relevância. Pais, mães, educadores e sobreviventes têm procurado o perfil do projeto no Instagram para saber mais ou compartilhar suas histórias. “Isso mostra que o jogo toca em algo que é urgente, necessário e ainda pouco falado”, concluiu Mariana.

Uma vaquinha por coragem e visibilidade

Com o prêmio internacional confirmado, o próximo passo é garantir presença na cerimônia oficial do iF Design Award 2025 na Espanha. Para isso, Jésia Vunschel lançou uma campanha de arrecadação online com o objetivo de custear os gastos da viagem e ampliar o impacto do projeto.

A meta da vaquinha é arrecadar R$ 6.000, valor que será destinado à hospedagem, alimentação, seguro-viagem, deslocamentos e à produção de três novas cópias físicas do jogo Rua das Crianças Corajosas. Uma dessas cópias será usada em oficinas e rodas de conversa; as outras duas serão enviadas a psicólogas especialistas na prevenção de abuso infantil, que poderão aplicar o jogo diretamente em suas práticas com crianças.

A campanha também busca fortalecer o alcance do projeto, que já vem sendo procurado por profissionais de diversas regiões. “Essa ida à Espanha não é só uma celebração. É uma chance de levar essa iniciativa mais longe, de mostrar que é possível tratar temas delicados com coragem, sensibilidade e design social”, afirmou Jésia. A vaquinha está disponível na plataforma Vakinha, com o ID 5494900.

Serviço

Nome do jogo: Rua das Crianças Corajosas

Criadora: Jésia Vunschel Gualter

Público-alvo: Crianças a partir de 4 anos, com mediação de educadores ou psicólogos

Descrição: Jogo de tabuleiro educativo que ensina, de forma lúdica, temas como limites corporais, toques, segredos e redes de confiança, com foco na prevenção ao abuso infantil.

Instagram do projeto: @ruadascriancascorajosas

Vaquinha para apoio ao projeto: https://www.vakinha.com.br/5494900

Meta: R$ 6.000

Objetivo: Financiar a ida à cerimônia do iF Design Award na Espanha e produzir novos exemplares físicos do jogo para uso educacional e terapêutico


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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