"O CAPS é cuidado, o hospital é silenciamento", alerta Ivon Lopes
"O CAPS é cuidado, o hospital é silenciamento", alerta Ivon Lopes
O modelo de atenção à saúde mental em Pelotas voltou ao centro do debate após a suspensão temporária dos atendimentos pelo SUS no Hospital Espírita. O caso de uma mulher em surto que teve o atendimento negado mobilizou a cidade e expôs uma dicotomia incômoda: enquanto o CAPS oferece cuidado, escuta e acolhimento, o hospital ainda representa o silenciamento por meio da contenção e da medicação em massa.
Em entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom, Ivon Lopes — usuário da rede de saúde mental e ex-presidente da AUSSMPE (Associação de Usuários de Serviços de Saúde Mental de Pelotas) — analisou os impactos da crise no HEP e alertou para o risco de retrocessos na luta antimanicomial. Com base em sua trajetória pessoal e militante, Ivon defende o fortalecimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como eixo central de uma política pública baseada no cuidado em liberdade.
O colapso como sintoma: quando a crise do HEP revela um modelo falido
Para Ivon Lopes, a suspensão dos atendimentos pelo HEP, embora atribuída a uma questão financeira, revela algo mais profundo: o esgotamento de um modelo centrado na hospitalização. "O CAPS deveria ser suficiente para atender toda a população de Pelotas, mas não está estruturado para isso. E quando a crise bate à porta, volta-se ao hospital, como se fosse a única saída", observa.
A decisão de negar atendimento a uma mulher em surto, segundo Ivon, simboliza um tipo de "contenção de despesas" que ignora os princípios da Reforma Psiquiátrica. Para ele, a situação expõe o papel ambíguo do Hospital Espírita na rede: mesmo sendo parte da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), continua operando sob lógicas antigas. "Hospitais deveriam ser a última alternativa, e não a primeira opção aos finais de semana, quando os CAPS estão fechados."
Ele relembra que cidades como Santos e Campinas já fecharam seus hospitais psiquiátricos, e destaca a experiência italiana, onde a Lei da Reforma Psiquiátrica, aprovada em 1978, foi decisiva para o fechamento progressivo dessas instituições. Essa legislação substituiu o modelo hospitalar por uma rede de serviços comunitários de saúde mental. Ivon, que visitou centros italianos e acompanhou a implantação da Reforma no Brasil, considera inaceitável que, em pleno 2025, Pelotas ainda dependa de um hospital psiquiátrico como pilar da sua política de saúde mental.
Entre contratos e direitos: quem paga a conta da omissão?
Durante a entrevista, Ivon criticou a forma como os contratos com instituições privadas, mesmo as filantrópicas, têm sido tratados. Ele alertou que, nessa disputa entre legalismos e interesses financeiros, quem fica desassistido é o usuário. A preocupação, segundo ele, é que a lógica de metas e produtividade hospitalar não seja compatível com a complexidade do cuidado em saúde mental.
A solução, para ele, passa por um fortalecimento da rede pública e comunitária. "Os CAPS precisam funcionar 24 horas, ter equipes completas e estar preparados para acolher a demanda inclusive nos finais de semana." Ivon lembra que isso foi uma das reivindicações apresentadas na última conferência de saúde do município, onde também se pediu a presença de um psiquiatra no pronto-socorro.
Ele denuncia ainda a fragilidade da atual estrutura: "Muitos profissionais saem porque recebem ofertas melhores em outras cidades. Enquanto isso, o usuário fica esperando atendimento ou sem acesso à medicação, por falhas na licitação." Segundo Ivon, o sistema está longe de garantir os direitos previstos pela Reforma Psiquiátrica.
As ameaças ao cuidado em liberdade
Ao refletir sobre os retrocessos em curso, Ivon destaca a crescente influência de comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos na formulação de políticas públicas. "Tem muita gente no poder que não acredita no CAPS. Preferem internar por nove meses em instituições religiosas, muitas vezes sem profissionais, sem medicação e com trabalho forçado."
Ele compartilha casos em que usuários têm seus benefícios desviados por essas instituições. "Ficam lá por quase um ano, e o dinheiro da aposentadoria vai para a entidade. O retorno, na maioria das vezes, é mínimo", critica. Ivon também aponta o risco de que a população, por medo ou desinformação, acabe apoiando soluções baseadas na hospitalização compulsória.
"A família tem medo, quer uma saída rápida. Mas o CAPS acolhe, avalia e acompanha com cuidado e responsabilidade. A luta é para mostrar que é possível outro modelo de atenção à saúde mental." Ele reforça que o tratamento em liberdade não exclui o cuidado intensivo, mas prioriza a escuta, a singularidade e o respeito às trajetórias individuais.
Mobilização e futuro
A resistência ao retrocesso, segundo Ivon, depende da articulação entre usuários, coletivos e a sociedade civil. Ele destaca a importância de eventos como conferências e congressos de saúde mental, que são espaços de formação, mobilização e incidência política.
Ivon também enaltece a parceria com as universidades de Pelotas. "Os CAPS recebem estagiários de psicologia, terapia ocupacional, serviço social. Isso faz diferença no atendimento. Mas lamentamos que os cursos de medicina ainda priorizem estágios em hospitais psiquiátricos, o que perpetua uma formação centrada na internação."
Ele vê com esperança a atuação da atual coordenadora de saúde mental do município, Luciane Kantorski, que está empenhada na criação de um CAPS III em Pelotas. "Com um CAPS funcionando 24 horas, não haveria mais justificativa para manter o hospital psiquiátrico aberto", diz. Para Ivon, a população precisa ser informada e mobilizada para exigir uma saúde mental pública, comunitária e não manicomial.
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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