Lesões bucais podem revelar violência doméstica, aponta pesquisa da UFPel
Lesões bucais podem revelar violência doméstica, aponta pesquisa da UFPel
Ela chegou ao consultório acompanhada. O homem que insistia em entrar com ela parecia preocupado demais. Quando finalmente conseguiu ficar sozinha com a equipe na sala de atendimento, desabou: estava sendo agenciada, agredida e longe da família. A dor no dente era um componente de um contexto muito mais sério. E foi ali, na cadeira do dentista, que encontrou a primeira chance de pedir ajuda. O caso aconteceu em Pelotas e marcou profundamente o estudante de odontologia Henrique Jalil — mas está longe de ser o único.
Em entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom, Jalil relatou sua experiência como pesquisador do projeto “Lesões Orofaciais como Expressão das Violências Doméstica e Comunitária: Uma Análise Retrospectiva”, que une ciência, sensibilidade e compromisso social. A iniciativa transforma o consultório odontológico em espaço de acolhimento e escuta, onde lesões na boca ganham novas camadas de significado — e podem ser o primeiro sinal de um pedido silencioso de socorro.
Quando o dente conta o que a boca não consegue dizer
A pesquisa nasceu do incômodo diante do óbvio que ninguém queria ver. No atendimento a pacientes com traumatismos dentários no CETAT — Centro de Estudos, Tratamento e Acompanhamento de Traumatismos em Dentes Permanentes —, Henrique observou a frequência assustadora de lesões que não pareciam ser simples acidentes. "Durante a pandemia, a violência aumentou. E a gente foi vendo que tinha coisa ali que a técnica não explicava", conta.
Um dos casos que mais impactou a equipe foi o de uma paciente que chegou acompanhada pelo agressor. Ele insistia em entrar no consultório, mas as regras de prevenção à Covid-19 impediam. Quando ficou sozinha, revelou o que acontecia: estava sendo forçada a se prostituir contra a vontade, havia sido agredida e não tinha mais contato com a família. A denúncia só foi possível porque encontrou um espaço seguro para falar. "Quando a gente se depara com isso, o corpo gela. A gente pensa: o que eu faço agora?", lembra Jalil.
Foi com esse tipo de situação que o projeto se tornou mais do que um levantamento estatístico: virou rede de cuidado. O grupo criou, dentro da própria Faculdade de Odontologia da UFPel, um protocolo de atendimento para acolher vítimas de violência. "Não se trata só de dentes. A gente acolhe pessoas em sofrimento", afirma o pesquisador.
Casos como esse escancaram o papel fundamental da odontologia na escuta de sinais não verbais. Muitas vezes, o trauma está no olhar, no silêncio, nas respostas vagas e nos gestos retraídos. “A violência física não dói só no corpo. Ela traz vergonha, medo, humilhação. O dente avulsionado não é só uma lesão — é o vestígio de uma história", explica Jalil.
Lesões complexas e um silêncio barulhento
Pacientes que chegam com múltiplos traumas — problemas simples combinados com lesões mais graves, como a avulsão total do dente — acendem o alerta. Segundo Jalil, esse padrão é recorrente em vítimas de agressão. "A pessoa está em choque. Às vezes ela diz uma coisa para o aluno e outra diferente para o professor na mesma consulta", relata. O comportamento hesitante pode ser mais revelador do que a própria lesão.
Uma história que ficou marcada foi a de uma paciente que apareceu com o dente arrancado, em visível sofrimento. Durante o procedimento de recolocação do dente, ela chorava sem parar. "Não era pela dor física. Era pela dor do que causou aquilo", diz Henrique. Ela desapareceu após a primeira consulta, não atendeu ligações, não retornou mensagens. Só muito tempo depois, voltou em um dia qualquer, sem agendamento. "Ela sabia que atendíamos às terças. Voltou porque o dente caiu de novo. Mas a gente sabia que o problema maior não era o dente."
Essas experiências moldaram a metodologia da pesquisa, que analisou prontuários de pacientes entre 2011 e 2021. Foram cruzados dados clínicos, como tipo de lesão e tempo de acompanhamento, com o comportamento e histórico social dos pacientes. A análise foi minuciosa e deu origem a um artigo publicado em uma das principais revistas acadêmicas internacionais da área. O projeto, que já atende pacientes de várias cidades da região, tornou-se referência nacional. “É uma pesquisa que começou com números, mas que nos obriga a olhar nos olhos. E isso muda tudo”, resume Jalil.
O projeto de pesquisa conta com a orientação da professora Cristina Braga Xavier, docente do Departamento de Cirurgia e Traumatologia BucoMaxiloFacial da UFPel e fundadora do CETAT, e com a coorientação da professora Letícia Morello Sartori. A pesquisa de Henrique Jalil é desenvolvida no contexto do CETAT, serviço com mais de duas décadas de atuação voltado ao atendimento de traumatismos dentários em Pelotas e região. A equipe do projeto também conta com o trabalho da assistente social Glória Dravanz, que integra a estrutura da Faculdade de Odontologia e atua de forma articulada com os casos de violência identificados nos atendimentos, exercendo um papel essencial no acolhimento e encaminhamento das vítimas.
Acolhimento em rede: como Pelotas está se transformando
O impacto da pesquisa vai além das fronteiras da universidade. O projeto também atua na formação de profissionais com um novo olhar: o da escuta ativa, da empatia e da articulação com a rede de apoio. Oficinas, rodas de conversa e participações em congressos têm feito com que o tema da violência entre de vez nos corredores da Faculdade de Odontologia — e alcance também outros cursos e instituições.
Henrique acredita que um dos papéis centrais do projeto é visibilizar a violência doméstica, ainda cercada de tabus. "Às vezes a gente é a primeira pessoa com quem a vítima fala. E precisa estar pronto para isso. Nem sempre vamos saber o que fazer — mas precisamos saber com quem contar", reforça. Nesse sentido, a parceria com assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais da saúde é essencial.
A experiência também revelou um dado importante: muitas vítimas só buscam ajuda após uma lesão grave. Por isso, o acolhimento não pode ser uma exceção, mas uma política permanente dentro das unidades de saúde. A UFPel, segundo Jalil, tem sido parceira no processo de institucionalização do protocolo e na construção de um atendimento realmente humanizado.
Essa articulação tem mudado a mentalidade de estudantes e professores. "Os alunos dos primeiros semestres já chegam perguntando sobre a Glória (assistente social do projeto), já sabem que tem um protocolo. Isso mostra que estamos construindo algo que vai ficar", celebra.
A dor dos dados: resultados, desafios e futuro
Na segunda etapa do projeto, Henrique mergulhou em um mar de documentos do Instituto Geral de Perícias (IGP) de Pelotas. Foram analisados 4.800 prontuários de vítimas de violência doméstica entre 2015 e 2023. A maioria passou por perícias médicas, mas muitos outros casos sequer chegaram a ser denunciados — escancarando a subnotificação que ainda ronda o tema.
Lidar com esses dados não foi simples. "Ler cada laudo, imaginar cada história, foi exaustivo. Às vezes, eu saía com vontade de ligar para a pessoa e perguntar se ela estava bem", confessa. Henrique buscou apoio em terapia, nas conversas com a orientadora e com colegas para manter o equilíbrio emocional. "A professora Cristina sempre me lembrava: 'não é sobre ti, é sobre a mudança que isso pode gerar'."
Hoje, prestes a se formar, ele carrega a certeza de que odontologia também é sobre humanidade. "A gente aprende tudo sobre canal, restauração, prótese. Mas esquece que tem uma pessoa por trás daqueles dentes. Uma pessoa que talvez gastou os últimos R$15 para chegar até o consultório."
Seu próximo passo é apresentar os dados da pesquisa para gestores públicos e profissionais da saúde de Pelotas, com o objetivo de capacitar cirurgiões-dentistas da rede básica e também da iniciativa privada. "Conhecimento salva. Mesmo que a gente não saiba agir, saber para onde encaminhar já pode fazer toda a diferença."
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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