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Estive em Horroroso: novo livro de Sica convida leitor a encarar a cidade que ninguém quer ver

Estive em Horroroso: novo livro de Sica convida leitor a encarar a cidade que ninguém quer ver

Um retrato ilustrado do fracasso urbano

Existe uma cidade onde o esgoto corre a céu aberto, o ponto de ônibus não tem cobertura e a fé virou propaganda turística. Essa cidade tem nome: Horroroso. No entanto, ela poderia se chamar como qualquer outro município brasileiro. Em Estive em Horroroso e lembrei de você, o cartunista Rafael Sica constrói, com traços silenciosos e profundos, um mapa emocional e político do descaso urbano que muitos fingem não ver — mas que está logo ali, dobrando a esquina.

A obra foi tema da entrevista com Sica no programa Contraponto, da RádioCom, nesta sexta-feira, 16 de maio, dia em que o livro será lançado às 18h na Livraria Vanguarda. Durante a conversa, o autor detalhou o processo criativo da obra, sua crítica ao urbanismo excludente, e a escolha do desenho como meio de expressão direta e inquietante. O livro é um convite: caminhar por Horroroso é, ao mesmo tempo, reconhecer a cidade onde se vive — e questioná-la.

O nascimento de Horroroso: quando o cotidiano vira distopia

Rafael Sica teve a primeira ideia de Horroroso quando saiu de casa num dia comum e, de repente, percebeu que já estava lá. A cidade imaginária surgiu de cenas cotidianas de negligência, abandono e contradições que ele observava nas ruas. “O município de Horroroso é evitado. Ele está perto de qualquer cidade, mas ninguém quer estar lá”, resume. A sensação de desconforto se transformou em impulso criativo.

Com esse olhar atento, Sica começou a registrar cenas, tipos e rotinas que poderiam pertencer a qualquer lugar do país. O livro foi sendo gestado durante a pandemia, atravessado pelas crises políticas, ambientais e humanas que se intensificaram desde então. As enchentes recentes, segundo ele, reacenderam a urgência de denunciar a distância entre o poder público e os cidadãos.

Nas páginas ilustradas do livro, a vida continua mesmo quando tudo desmorona. “A rotina vira um rito, uma forma de manter a sanidade enquanto a cidade cai atrás da gente”, diz. Em Horroroso, o progresso é fachada; o real está nos escombros ignorados e nas vidas que resistem entre eles.

O desenho como linguagem de denúncia e liberdade

Diferente da charge tradicional ou da HQ, o livro de Sica apresenta um desenho silencioso, sem balões ou falas explícitas. Cada imagem é uma peça de um percurso visual que sugere, mais do que afirma, e que provoca reflexão sem didatismo. “Não é uma história em quadrinhos. É como caminhar por uma cidade onde tudo fala, mesmo sem palavras.”

A escolha pelo desenho como linguagem central não é apenas estética — é também política. “O desenho aceita tudo. Ele é direto, acessível, e permite uma liberdade que outras formas não dão”, afirma. Usando técnicas manuais e rudimentares, como bico de pena e nanquim, Sica defende o poder expressivo do traço, que não busca o realismo, mas sim a verdade simbólica das cidades.

Apesar de ser um trabalho solitário, o livro tem colaborações que ampliam seu impacto: a fotografia de Paulo Rossi na capa, a orelha assinada por Amanda Miranda e posfácio de um arquiteto urbanista. Para Sica, a troca entre linguagens reforça a potência do desenho como ferramenta de crítica e diálogo social.

Humor, ironia e um lugar para respirar

Por mais duro que seja o conteúdo de Estive em Horroroso, o humor está presente como respiro necessário. “Não é um humor de piada, mas um humor afetivo, que nos ajuda a lidar com o absurdo”, explica o autor. É essa ironia sutil que transforma situações trágicas em reflexões poéticas, abrindo espaço para o leitor rir — e pensar.

Sica também reflete sobre os limites da imprensa tradicional e o lugar marginal, porém livre, que o desenho ocupa hoje. “O jornalismo está refém de interesses. O desenho ainda permite provocar, falar do opressor, tocar nas feridas.” Segundo ele, o universo dos quadrinhos ganhou diversidade nas últimas décadas, graças a feiras e editoras independentes que criaram um ecossistema mais plural e engajado.

Mesmo com públicos pequenos, ele vê valor em atingir nichos com profundidade. “Não importa falar para milhares. Importa que quem leia se sinta provocado, tocado.” Em Horroroso, o riso é resistência. E o traço, um grito silencioso.

Horroroso e suas pistas para a vida real

O livro constrói uma cidade completa, com suas instituições, símbolos e fracassos. “É como um guia visual. Horroroso tem tudo: orgulho regional, fé espetacularizada, progresso mal distribuído e esgoto exposto”, afirma Sica. A cidade fictícia, ao exagerar o real, revela as contradições que normalizamos no cotidiano.

Monumentos religiosos se erguem enquanto faltam serviços básicos. O discurso do pertencimento vira propaganda vazia. “Horroroso quer ser visto, quer ser visitado, mas continua esquecido.” Para o autor, a cidade imaginária permite uma crítica sem o constrangimento de atacar diretamente sua própria cidade — embora, como ele reforça, “Horroroso está em qualquer lugar”.

Ao criar essa alegoria urbana, Sica convida o leitor a reavaliar seu entorno. Onde está o horror? Onde está a beleza? E o que significa, afinal, viver numa cidade que se orgulha de esconder suas rachaduras?

Existe saída para Horroroso?

Mesmo diante de tantas críticas, o livro não fecha portas. Para Sica, a saída de Horroroso está nas políticas públicas e na ampliação da participação popular. “Não acredito em ruptura, mas sim em aproximação. É preciso reforçar o elo entre o cidadão e o poder público.”

As enchentes serviram como exemplo recente dessa urgência. “Vimos a força dos movimentos civis e a lentidão das instituições. É esse contraste que precisa mudar.” Eventos como conferências populares e espaços de escuta, segundo ele, são fundamentais para abrir novos caminhos.

“Horroroso não some quando você vira uma esquina. Mas talvez a gente consiga transformar um pedaço dele. E isso já é muito”, conclui.

Serviço

Nome do evento: Lançamento do livro Estive em Horroroso e lembrei de você

Data e horário: Sexta-feira, 16 de maio, às 18h

Local: Livraria Vanguarda (Rua Gonçalves Chaves, Pelotas)

Descrição: Sessão de autógrafos e conversa com o autor Rafael Sica sobre seu novo livro ilustrado, publicado pela Companhia das Letras

Acesso: Aberto ao público


Nome do evento: Oficina “Desenho Horroroso”

Data e horário: Sábado, 17 de maio, das 10h às 12h

Local: Livraria Vanguarda (Rua Gonçalves Chaves, Pelotas)

Descrição: Oficina livre de desenho com Rafael Sica, voltada para todas as idades. Proposta de reflexão sobre o que é um desenho bonito ou horroroso

Acesso: Basta levar seu material de desenho


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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