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Entenda a disputa para reformar o Carf, que pode decidir o destino de R$ 70 bilhões por ano

Entenda a disputa para reformar o Carf, que pode decidir o destino de R$ 70 bilhões por ano

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), anunciou já no seu primeiro mês no cargo um pacote de medidas para reduzir o déficit de R$ 231 bilhões das contas públicas previsto no Orçamento deste ano. Para isso, propôs, entre outras coisas, mudar as regras de julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), o que despertou intensa mobilização política de grandes empresários contra a ideia.

De acordo com o auditor da Receita Ricardo Fagundes, conselheiro do Instituto Justiça Fiscal (IJF), a insatisfação está ligada a cerca de R$ 70 bilhões por ano que esses grandes empresários terão de pagar em impostos ao governo caso a medida proposta por Haddad se concretize. Hoje, a União não recolhe esses impostos por conta de uma lei sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) beneficiando justamente esses empresários.

O Carf é uma espécie de tribunal administrativo (não pertence ao Judiciário) que julga principalmente recursos de empresas contra autuações da Receita Federal. Por exemplo: um auditor vai a uma fábrica e detecta a sonegação de um tributo federal. A fiscalização vira uma cobrança, que pode ser questionada pela fábrica na própria Receita e, depois, no Carf.

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No Carf, essa cobrança é julgada por turmas de oito ou dez conselheiros. Visando um julgamento mais equilibrado, em tese, metade dos conselheiros de cada turma é nomeado pelo governo federal, cobrador do imposto, e a outra metade é composta por conselheiros escolhidos por entidades empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) --entidade em que a fábrica cobrada no exemplo acima pode ser filiada.

Acontece que, como cada turma tem um número par de conselheiros, é possível que os julgamentos no Carf terminem empatados. Até 2020, nesses casos, o presidente da turma, que é sempre nomeado pelo governo, teria um voto de minerva, o tal voto de qualidade. Ou seja, se ele entendesse que a cobrança era correta, ela seria lançada. Entendimento contrário do presidente levaria ao cancelamento da autuação.

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Foi justamente isso que mudou após Bolsonaro sancionar a Lei 13.988/20, oriunda de uma Medida Provisória (MP) editada também por ele. A nova legislação acabou com o tal voto de qualidade. Estipulou que, em casos de empate, o contribuinte --a fábrica, no caso do exemplo-- sairia vitoriosa da disputa no Carf. A cobrança do imposto seria cancelada.

Haddad assinou em 12 de janeiro uma outra MP retomando o voto de qualidade no Carf. Classificou a situação no órgão criada por Bolsonaro como “uma vergonha”. Primeiro, porque essa regra não tem paralelo em nenhum lugar do mundo. Depois, porque contraria jurisprudência consolidada em tribunais brasileiros.

Arrecadação reduzida

Segundo as contas do Ministério da Fazenda, a retomada do voto de qualidade do Carf de um conselheiro nomeado pelo governo federal poderia levar a uma arrecadação extra de até R$ 35 bilhões só neste ano. O valor, segundo Fagundes, tende a ser maior no futuro.

Fagundes é autor de um estudo sobre o Carf realizado pelo IJF. Ele disse que, só em 2022, o governo deixou de arrecadar R$ 25 bilhões em processos que tiveram julgamento empatado e acabaram favorecendo os contribuintes. Isso é 20% do valor total das causas julgadas: R$ 120 bilhões.

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Em 2022, entretanto, houve uma greve na Receita Federal. Isso tornou o ano do Carf atípico, com menos julgamentos.

Historicamente, o órgão julga causas que, somadas, envolvem cobrança de até R$ 350 bilhões por ano. Se o voto de qualidade não tivesse sido retomado e 20% dessas cobranças também tivessem julgamentos empatados, o governo perderia cerca de R$ 70 bilhões por ano.

Atualmente, há R$ 1,2 trilhão em recursos administrativos sobre cobranças da Receita à espera de decisão final. Considerando que 20% desses recursos poderiam terminar com julgamentos empatados no Carf, a arrecadação pedida seria de R$ 240 bilhões.

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Como menos arrecadação, o governo se vê obrigado a cortar gastos e investimentos. Ou então a manter a tributação sobre os mais pobres não corrigindo, por exemplo, a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física.

Resistência dos grandes

Isac Falcão, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional), afirmou que essa perda de arrecadação da União beneficia um número muito pequeno de empresas. Cerca de 90% dos R$ 25 bilhões que o governo deixou de arrecadar em 2022 sem o voto de qualidade do Carf eram impostos cobrados de somente 26 companhias.

“A solução em favor do autuado não beneficia a pessoa física, a pequena empresa, a média empresa, nem mesmo a grande empresa. Só essas 26 mega empresas”, disse Falcão. “Elas têm poder político nas confederações empresariais que indicam os conselheiros do Carf.”

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Justamente essas companhias são as que mais fazem pressão para tentar modificar a MP encaminhada pelo novo governo ao Congresso durante sua tramitação. Foram apresentadas 120 propostas de emendas ao texto. A Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE), por exemplo, gostaria de incluir na MP novas regras para a nomeação dos conselheiros do Carf.

O ministro Haddad recebeu no início do mês o presidente do conselho do grupo de empresários Esfera Brasil, João Camargo, para ouvir dele sugestões sobre o Carf. Camargo pediu ao governo que, se o voto de qualidade realmente for mantido, que empresas tenham abatimento de multas e juros sobre cobranças que acabem com julgamentos empatados.

Ainda não há uma sinalização clara do governo sobre os pedidos dos empresários e as emendas à medida provisória, que segue válida à espera de votação.

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Falcão é contra o abatimento de multas e juros. Para ele, isso vai fazer com que mais empresas busquem o Carf só para protelar pagamento de cobranças. Ele lembrou, contudo, que a força dos empresários na política é grande. Pode ser que o governo ceda para ao menos poder cobrar os impostos.

“É disfuncional do ponto de vista econômico [o abatimento dos juros e multas]. Mas é menos disfuncional do que o modelo que tem hoje em que não paga nada”, disse Falcão. “É uma questão de avaliação política. O que há hoje é uma aberração.”

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Vinicius Konchinski

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |


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