De Pelotas à Rússia em um Fusca 68, com muita escuta e humanidade
De Pelotas à Rússia em um Fusca 68, com muita escuta e humanidade
Viajar o mundo a bordo de um Fusca 68 pode parecer loucura para alguns, mas para o jornalista, fotógrafo e documentarista Nauro Júnior, foi o caminho para redescobrir o essencial da vida. Durante 12 anos, ele percorreu 17 países guiado pela simplicidade do icônico carro, registrando encontros, paisagens e reflexões que agora se transformam em documentário: "O mundo cabe em um Fusca". Com imagens deslumbrantes, humor, emoção e uma dose de ousadia, o filme está pronto para circular pelos principais festivais de cinema no Brasil e no exterior.
No programa Contraponto, da RádioCom, Nauro falou sobre o processo de construção do filme, que nasce da estrada, da filosofia de vida e da busca por felicidade nas coisas simples. O documentário é também uma declaração de amor ao olhar documental, à escuta atenta e à experiência transformadora de se colocar no caminho.
Do iPhone ao Fusca: a origem de uma ideia
A ideia do filme não surgiu de um plano elaborado, mas de um gesto simbólico: a troca de um iPhone por um Fusca 1968. Ao perceber que possuía um celular caro mas não tinha como se deslocar até a faculdade, Nauro optou por um caminho fora do convencional. A escolha pelo carro, carregado de memórias afetivas da infância, se tornou o ponto de partida de uma jornada que misturou cotidiano e utopia.
O projeto começou em 2013 com uma travessia da Praia do Cassino até o Chuí. O que seria um curta documental sobre esse trecho se transformou, com o tempo, em uma odisseia de 12 anos. Foram mais de 500 horas de imagens captadas e uma pergunta central guiando o olhar: “Como é ser feliz com simplicidade?”
Ao longo da jornada, o Fusca funcionou como um nivelador social. Em vez de chegar aos lugares com pressa e objetivo extrativista, como costuma ocorrer na grande mídia, o carro permitia encontros, conversas, convivências. Segundo Nauro, "as pessoas se entregavam porque se sentiam à vontade".
Montagem, equipe e a força coletiva
Apesar da grande quantidade de material, a finalização do documentário só foi possível graças a um projeto aprovado pela Satolep Press, em parceria com a FAQ Filmes e a Secretaria de Cultura do Estado. Com recursos destinados à finalização, foi possível reunir uma equipe qualificada que incluiu nomes como Cíntia Langie, professora do curso de cinema, e o coordenador de fotografia Felipe Campal.
A montagem ficou a cargo de Juliano Ambrosini, que assumiu a tarefa de decupar as 500 horas de material captado ao longo de décadas. Segundo Nauro, o desafio maior foi dar coesão a uma história que é ao mesmo tempo pessoal e universal.
Do livro ao filme, sem estrelismos
Durante a pandemia, Nauro também escreveu o livro "A vida cabe em um Fusca", lançado no Brasil e em Portugal. A obra narra histórias atravessadas pelo mesmo sentimento do documentário: o desejo de mostrar que o essencial não está nos bens materiais, mas nas experiências vividas e compartilhadas.
Segundo o autor, a ideia nunca foi se tornar um influenciador ou youtuber de viagem. A intenção era construir uma obra robusta, pensada para as linguagens do cinema e da literatura. Por isso, boa parte das imagens ficaram guardadas durante anos, sem serem divulgadas nas redes.
Agora, com o filme pronto, o objetivo é inscrevê-lo em festivais nacionais e internacionais. O documentário possui acessibilidade completa (com áudio descrição, libras e legendas em inglês e espanhol) e já está inscrito no Festival de Brasília. A ideia é ampliar o circuito para toda a América Latina.
Pepe Mujica e o valor do encontro
Entre os muitos momentos marcantes da trajetória registrada no filme, o encontro com o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica ocupa um lugar especial. Foram quatro visitas à chácara do Mujica antes de, finalmente, conseguirem conversar e gravar juntos. O ex-presidente aparece dirigindo o Fusca de Nauro, sendo conduzido no próprio carro, e também em conversas com a família do documentarista.
Apesar da relevância simbólica da figura de Mujica, Nauro fez questão de tratá-lo como mais um personagem entre tantos outros. "No filme, o Mujica aparece do mesmo jeito que o campesino no deserto ou o mecânico que nos ajudou na Rússia", contou. Segundo ele, o verdadeiro protagonista da história é o próprio Fusca — listado nos créditos como "ator principal", ao lado de outro Fusca usado na produção, tratado como "coadjuvante".
A mensagem central segue clara: a estrela do filme não é uma figura pública ou um destino exótico, mas sim o espírito de simplicidade, escuta e humanidade que guiou toda a viagem.
Conexões na estrada: o encontro com a Rússia
Entre os muitos territórios percorridos, a passagem pela Rússia se destacou pela intensidade e pelos desafios culturais e logísticos. Durante a Copa do Mundo, em meio ao clima de euforia e diversidade, o velho Fusca seguiu cumprindo seu papel de mediador entre mundos distintos. Mesmo em um país de língua e códigos tão diferentes, a simplicidade do carro seguia abrindo caminhos — e afetos.
Foi na Rússia que um mecânico local, sensibilizado pela proposta da viagem, se dispôs a consertar o carro sem qualquer cobrança. Era mais um exemplo de como o documentário não se constrói com pressa nem com distanciamento. Ele nasce da escuta e do respeito, mesmo em lugares onde, à primeira vista, tudo parece distante.
A escolha por cruzar fronteiras com um veículo antigo e afetivo não foi apenas estética: foi política, no sentido mais amplo do termo. Foi uma forma de dizer que é possível se conectar com o outro fora da lógica do consumo e da velocidade. O Fusca, com sua mecânica simples e sua história comum a tantos povos, serviu como ponto de contato entre realidades muito distintas.
Para Nauro, a passagem pela Rússia sintetiza o que a jornada ofereceu de mais valioso: a chance de ver, escutar e ser escutado. A estrada não distingue passaportes, e o documentário se fortalece justamente nessa possibilidade de tornar o mundo menos estrangeiro, uma história por vez.
Imagens guardadas, sentidos preservados
Ao longo dos 12 anos de estrada, muitas das imagens captadas por Nauro Júnior ficaram em silêncio. Mesmo com uma comunidade de seguidores nas redes sociais, ele escolheu não compartilhar tudo em tempo real. Segundo ele, havia algo precioso demais naquelas imagens, que não cabia no formato instantâneo dos feeds. Era preciso deixar maturar.
Essa decisão foi uma forma de cuidado com a própria narrativa: guardar as imagens para o momento certo, permitir que elas encontrassem uma moldura coerente e sensível. Em vez de exibir fragmentos descontextualizados, Nauro preferiu construir uma obra coesa, onde cada cena carrega um tempo vivido, uma emoção elaborada, uma escuta profunda.
“Não era conteúdo para internet”, resumiu. Era filme. E filme precisa de tempo. Tempo de estrada, de revisão, de montagem e de partilha. Por isso, só agora essas imagens encontram o mundo, embaladas não por algoritmos, mas por sentidos. Elas não servem à pressa do scroll, mas ao compasso de quem olha com calma.
Serviço
Nome do filme: O mundo cabe em um Fusca
Data: 8 de agosto (sessões para convidados)
Local: Cineflix, Pelotas
Descrição: Documentário de Nauro Júnior sobre viagem por 17 países em um Fusca 1968
Exibição: Sessões fechadas para convidados antes da agenda de festivais
Acesso: Trailer no Instagram e YouTube da Expedição Fusca América
Livro: A vida cabe em um fusca
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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