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Contraponto: Projeto Desafio alerta para risco de colapso e pede apoio da comunidade
"Se não fosse por esse cursinho, eu nunca teria tido condições de estudar com estrutura". A frase de Cyrillo, estudante do Projeto Desafio Pré-Universitário Popular, resume a importância vital dessa iniciativa gratuita da UFPel. Com mais de três décadas de atuação, o Desafio se tornou sinônimo de esperança para jovens da periferia que sonham com a universidade pública. Agora, o projeto corre sério risco de interrupção por falta de recursos.
Na edição desta terça-feira do programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, Cátia Fernandes, coordenadora institucional, Vitor de Moraes Kickhofel, professor e coordenador de História, e Cyrillo Andrio Sabaraini Vieira, estudante, trouxeram denúncias graves sobre atrasos nos repasses financeiros e relataram as consequências da precariedade que ameaça o funcionamento de uma das ações sociais mais transformadoras de Pelotas.
Entre sonhos e obstáculos
Morador da periferia, Cyrillo representa centenas de jovens que enfrentam escolhas diárias entre trabalhar ou estudar. Seu relato expôs as dificuldades de quem precisa caminhar por falta de passagem, estudar com fome e lidar com a frustração da evasão dos colegas. "Já fui a pé várias vezes porque a bolsa atrasou. A turma reduziu pela metade. E sem estudar, a gente volta a desacreditar."
Ele relembra como ficou emocionado ao ser selecionado: "Nunca pensei que teria um cursinho. Quando vi essa oportunidade, reacendeu uma luz na minha vida. Aqui eles me acolheram, me deram professores e disseram: 'a gente vai ensinar vocês até o Enem'". Para Cyrillo, o Desafio não é apenas um curso, mas um espaço de dignidade, aprendizado e acolhimento.
Vitor enfrenta as contas e a sala de aula
Professor de História e coordenador de área no Projeto Desafio, Vitor já foi aluno do cursinho. Hoje, mesmo formado, ele relata as dificuldades de seguir atuando voluntariamente no projeto. "Tenho filha, contas, sou trabalhador. Se essa bolsa não vem, preciso fazer outros bicos. Isso afeta diretamente meu tempo de preparar aulas, apoiar os estudantes."
Com a paralisação das bolsas, Vitor e outros coordenadores de área não receberam o pagamento referente a maio. "Já investi do meu bolso para manter o mínimo. Pego ônibus do Capão do Leão por minha conta, enquanto tento garantir planejamento pedagógico, reuniões e atendimento aos alunos."
Ele lembra que a proposta do Desafio vai além do conteúdo: é formação cidadã, crítica, transformadora. Mas sem condições materiais, até o amor pela educação é colocado à prova. "Não dá pra educar só com amor se não tenho como pagar a luz ou comprar comida."
Fomento pendente
O contrato de fomento assinado com a Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), do Ministério da Justiça, previa R$ 761 mil para apoiar estudantes e garantir bolsas aos coordenadores. Até agora, só metade foi repassada. A segunda parcela, prometida para garantir a continuidade até dezembro, está travada.
Cátia explicou que houve troca de equipes técnicas na SAJU, somada a cortes orçamentários no ministério, o que impactou diretamente a execução do contrato. "Nos pediram para enviar três cenários: ideal, médio e enxuto. Já enviamos. A expectativa é uma resposta até esta quarta-feira."
Sem esse recurso, o projeto pode ser suspenso. "Não conseguimos pagar coordenadores em junho. Isso compromete a qualidade do ensino e o apoio ao estudante. Cada dia de atraso é um dia de aula perdido e um sonho fragilizado."
Sem resposta da Prefeitura para o transporte
A ausência de auxílio transporte é uma das principais causas de evasão entre os alunos. A coordenação do projeto esteve reunida com o secretário de Transporte de Pelotas, que se comprometeu a avaliar alternativas, mas até o momento não deu retorno concreto.
A proposta é criar um aditivo no contrato com a empresa consorciada para permitir isenção tarifária a estudantes do Desafio. "Não são alunos de cursinho pago, são jovens em vulnerabilidade. Mas seguimos sem resposta, cobrando como criança em shopping: 'na volta a gente compra'", ironizou Cátia.
Enquanto isso, estudantes de bairros como Simões Lopes, Castilho, Areal e Fragata enfrentam até quatro transportes diários para chegar à sede do curso. "Sem o vale, é inviável manter a rotina de estudos", afirma a coordenadora.
Sede no Anglo afasta quem mais precisa
Desde que foi transferido para o campus Anglo da UFPel, o Projeto Desafio sofre com a dificuldade de acesso. A localização afasta estudantes que moram longe do centro, encarecendo o transporte e inviabilizando turmas noturnas. "Muitos que trabalham à tarde desistem porque não conseguimos oferecer aulas à noite em local acessível", relatou Cátia.
A sede central segue como uma reivindicação antiga. Prédios disponíveis no centro foram descartados por estarem em reforma. A distância também compromete a segurança, especialmente para mulheres e pessoas LGBTQIA+, que se expõem ao deslocamento noturno.
A busca por inclusão passa também por localização: "Sem uma sede mais central, estamos excluindo quem mais precisa. A universidade precisa nos apoiar nisso também", afirmou Vitor.
Mobilização cresce enquanto ameaça de suspensão se aproxima
Sem respostas concretas do poder público, a coordenação do Desafio iniciou uma campanha de sensibilização popular. A ideia não é arrecadar fundos, mas mobilizar apoio social e institucional. Uma aula pública está sendo organizada como forma de visibilizar o projeto e cobrar soluções.
"O Desafio não pode ser mais uma porta fechada para quem luta por uma chance", afirmou Cátia. O apoio de docentes, estudantes, ex-alunos e simpatizantes se soma à pressão por soluções definitivas. "Temos alunos que passaram 15 anos sem estudar e voltaram por causa do Desafio. É muito mais que um cursinho, é uma rede de apoio, dignidade e esperança."
Se não houver resposta positiva do Ministério da Justiça até esta semana, o projeto poderá suspender suas atividades. "E aí, o que dizemos para essas pessoas que acreditaram no nosso projeto?", questionou Cátia.
Persistência de um futuro possível
Cyrillo reforçou o impacto do Desafio na sua vida: "Se não fosse pelo almoço gratuito, pela bolsa, eu não teria nem ido pra Escola (IFSul) antes. E agora que saí da Escola, foi o Desafio que me disse: 'Calma, a gente vai te ajudar a voltar a estudar'." Emocionado, ele concluiu: "O Desafio reacendeu minha esperança. Mas se não houver apoio, tudo isso vira mais uma frustração. E a gente que é pobre, quando desiste, é porque não sobrou mais nada".
Ele também lembrou que a estrutura oferecida pelo projeto ultrapassa a sala de aula. "Aqui, além das aulas, tem professores que escutam, tem gente que se importa. Não é só conteúdo, é saber que a gente importa. Isso muda tudo."
Mesmo diante das dificuldades, Cyrillo acredita que a permanência no Desafio pode significar uma virada de chave. "Eu só preciso continuar estudando. O resto, eu dou um jeito. Mas o estudo, se tirar isso, tira a única coisa que ainda pode me levar mais longe."
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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