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A vida perdida por trás da foto: ‘Foi quando ele descobriu que mãe morre’

A vida perdida por trás da foto: ‘Foi quando ele descobriu que mãe morre’

Um menino de cinco anos segura uma tela com um rosto de mulher. Na pintura, os dizeres: “Mirelle, presente” e “Ninguém solta a mão de ninguém”. A foto foi feita pelo repórter fotográfica Luiza Castro, do Sul21, na cobertura do protesto pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro realizado no último dia 29 de março, em Porto Alegre.

O rosto pintado é de Mirelle Barcos Nunes, falecida aos 43 anos no último dia 8 de abril. Uma das 465 mil vítimas fatais da covid-19 no Brasil, conforme os dados divulgados até esta terça-feira (1º.)

O menino é filho de Juliane Noschang, amiga de Mirelle há 24 anos. Ela conta que havia pintado o quadro após a amiga falecer e que resolveu levá-lo para a rua porque sabia que os familiares dela participariam do protesto. “Na hora me veio a frase, que ela falava muito, ‘ninguém solta a mão de ninguém’. E aí o meu filho quis ficar com a plaquinha o tempo todo. É uma criança de cinco anos, mas ele entende. Ele quis levar a Tia Mila. Ele tem cinco anos, mas já entende toda a situação”.

Juliane conta que a morte de Mirelle foi a primeira de uma pessoa próxima que o menino vivenciou. “Eu acho que foi a primeira pessoa que o meu filho viu de perto a perda. Foi quando ele descobriu que mãe morre, sabe. Até então, a gente não tinha tido uma perda tão próxima e a Mila era como se fosse uma irmã minha. ‘A Tia Mila virou estrelinha’, até hoje, ele fala. Tem medo do vírus, fala do vírus. Foi muito forte para ele, como uma criança, viver isso”, diz.

Turismóloga e professora

Mirelle era turismóloga de formação. Trabalhou como guia de turismo, foi funcionária da Prefeitura de Porto Alegre, começando como estagiária na Empresa Porto-Alegrense de Turismo (Epatur), depois se tornou professora em cursos relacionados à área do Turismo. Primeiro no Senac, por um breve período na Faccat e depois no Campus Restinga do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, onde completaria 11 anos de trabalho em 2021.

Era mãe de duas filhas. Luiza, 13 anos, e a Ana, oito, frutos do relacionamento de 17 anos com Gérson Pitol Righetto, 44 anos.

Após o falecimento, ela foi homenageada pelo IFRS, pelo Colégio João XXIII, onde estudou e onde as filhas estudavam, e pela Adufrgs, sindicato ao qual era filiada. Em memória dela, entidades e amigos ajudaram a organizar uma campanha de doação de alimentos que auxiliou 114 famílias da Quinta Unidade da Restinga, região onde lecionava, afetadas pela covid-19.

“Por onde ela passava, ela tinha esse poder de conquistar as pessoas. O pessoal fala, e eu assino embaixo, que ela tinha um sorriso contagiante, aquela gargalhada gostosa”, diz Gérson.

“A gente vinha há um ano isolados”

Gérson conta que a família entrou em isolamento no dia 16 de março de 2020. Como Mirelle fazia aniversário no 9 e ele no dia 20, haviam escolhido o dia 14 para uma celebração com familiares próximo. Na época, as notícias sobre o coronavírus avançavam rapidamente a cada dia e temeram que o evento pudesse ter infectado alguém. “Ainda não estava circulando por aqui, estava chegando em São Paulo, e ficávamos com medo, mas não aconteceu nada”.

Com o casal trabalhando de casa e as filhas no ensino remoto nos primeiros meses da pandemia, Gérson conta que resolveram, em outubro, alugar uma casa na praia de Remanso, balneário localizado no município de Xangri-lá, para que pudessem alternar o isolamento entre o local e a residência em Porto Alegre. “A gente resolveu mudar de ares até para as gurias terem uma diferença no ambiente. Mas, de lá, a gente ia para casa”, conta.

O contrato de aluguel da casa encerrou no dia 28 de fevereiro e resolveram alugar um sítio, para manter a mesma rotina. Logo em seguida, contudo, o irmão de Gérson contraiu o vírus, precisando ser hospitalizado. “No dia que ele foi hospitalizado, eu fiquei com o meu sobrinho, nosso afilhado, porque a esposa dele também estava hospitalizada. Então, para a gente não deixar o menino isolado, testamos ele e os testes deram negativo”.

O irmão passou 13 dias internado, 10 deles no CTI. “Se a gente já estava nos precavendo, começamos a nos precaver mais ainda. Mas lá pelo dia 11 de março, eu comecei a sentir os sintomas. No dia seguinte, ela. No dia 20, meu aniversário, ela baixou no hospital. Eu baixei no dia 22. Eu fiquei cinco dias, ela 22, até falecer”.

Gérson conta que Mirelle foi piorando até ser intubada no dia 26, último dia em que eles se falaram, por videochamada. Falaram sobre o tratamento não estar respondendo, pois a saturação do pulmão continuava baixa, mas que os médicos tentariam uma última alternativa. “Foi tentado de tudo, mas não deu”.

Ele conta que a esposa chegou a ter 80% do pulmão comprometido, enquanto ele próprio teve 40%. “A pneumonia dela foi mais forte, então o quadro foi muito pior que o meu”, diz Gérson, que não chegou a ser internado na UTI.

Pouco antes do falecimento, Gérson conseguiu levar Luiza e Ana para visitarem a mãe. “Elas fizeram um cartãozinho. A médica que nos atendeu, de uma humanidade espetacular, chorou junto com a gente, se emocionou e levou a nossa foto e leu o bilhete que a mais nova escreveu no ouvido da Mirelle”.

No dia seguinte, Gérson retornou, dessa vez sozinho. “Eu levei um áudio da Ana, a mais nova. Levei um áudio de uma música, que para nós era muito significativa, para ela ouvir. Foram tentativas não só médicas, mas também por um lado emocional, de tentar buscar uma luzinha lá no fundo, ouvir a nossa voz e se fortalecer. Não deu. Foi difícil ver o quadro se agravando e não poder fazer nada”.

Gérson diz que os médicos do Hospital Divina Previdência fizeram tudo que foi possível e que só tem a agradecê-los, pois foram os mesmos que salvaram a sua vida. “Essa doença é aleatória, primeiro para quem vai se infectar e, depois, no tratamento”.

Mirelle, presente

Juliane conta que resolveu levar a tela para o protesto porque sabia que, se a amiga estivesse viva, ela participaria. “Com certeza, ela estaria ali, por isso também essa coisa de levar. Ela sempre fez parte dos movimentos, então, com certeza, estaria ali de alguma forma”.

Ela conta que o sentimento que fica é de uma morte que não precisava ter acontecido se o governo federal não tivesse criado obstáculos para o início da vacinação no Brasil. “A gente está perdendo vidas que poderiam estar aí, se tivesse vacina. Ela é professora, talvez fosse ser vacinada agora, mas não deu tempo”, diz.

“O dia que o Dimas Covas (diretor do Instituto Butantan) foi na CPI da Covid, eu não consegui segurar o choro, ouvindo ele falar da quantidade de doses que foram negadas. E depois, quando a gente recebeu as informações sobre os estudos no município de Serrana [em que toda população adulta foi vacinada, reduzindo drasticamente o número de casos sintomáticos, internações e óbitos], aquilo ali nos mostra que, se tivéssemos feito uma vacinação massiva lá atrás, o quadro seria completamente diferente. A quantidade de pessoas mortas e que precisaram de internação, ficando com sequelas, seria muito menor”, diz. “Eu, sinceramente, espero que ele [Jair Bolsonaro] seja enquadrado nessa CPI. Provas têm de sobra que ele foi negligente com a vida das pessoas que morreram e espero que seja impedido, preso e pague por isso. Não só ele, tem bastante gente que deveria ir junto”.

Fonte: Sul 21

Imagem: Sul 21


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