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"A memória do teatro também está nos bastidores": por que arquivar é resistir

A memória do teatro vai muito além dos aplausos e palcos iluminados. Ela está nos bastidores, nos objetos de cena, nas histórias contadas e esquecidas. É com esse olhar que o projeto "Arquivos e Memórias do Teatro Fronteiriço" busca preservar o patrimônio das artes cênicas na tríplice fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina. A iniciativa, conduzida pelo ator, palhaço, produtor cultural e pesquisador Fábio Belém, foi apresentada no programa Contraponto da RádioCom e propõe um mergulho nos arquivos vivos e esquecidos do teatro sul-americano.

Durante a entrevista, Belém compartilhou detalhes sobre o workshop que será realizado em Pelotas e falou sobre os desafios de resgatar e organizar a memória de companhias teatrais, especialmente aquelas que já não estão mais em atividade. Com mais de 25 anos de atuação na cena cultural, o pesquisador utiliza sua trajetória pessoal e acadêmica para lançar uma provocação: como as companhias teatrais preservam (ou não) sua história?

A importância de guardar o que não se vê

Para Fábio Belém, preservar a memória teatral é um ato político. Ele ressalta que companhias e artistas devem reconhecer a importância de suas trajetórias e construir arquivos próprios, que incluam não apenas espetáculos e roteiros, mas também bastidores, conflitos, silêncios e afetos. "A história de uma companhia não é só o que se apresenta no palco, mas também o que ela vive nos bastidores", afirmou.

Segundo o pesquisador, o maior desafio é conscientizar os próprios grupos sobre o valor de suas experiências. "É fundamental que as companhias entendam que o trabalho delas é relevante para a posteridade. Sem arquivos, a história do teatro se perde." Ele destaca ainda que muitos registros estão dispersos, em mídias obsoletas ou desorganizadas, dificultando o acesso e o estudo posterior.

A proposta do projeto é justamente oferecer ferramentas para que grupos teatrais criem seus próprios arquivos, de maneira acessível e expandida, incluindo registros audiovisuais, documentos, objetos de cena e, principalmente, memórias orais.

Silêncios que também contam histórias

Belém lembrou que os arquivos oficiais muitas vezes deixam de fora aspectos importantes da história teatral: trabalhadores invisibilizados, conflitos internos, artistas marginalizados. "Falar sobre memória é também falar sobre o que foi silenciado. Isso também precisa ser resgatado para termos uma visão mais completa das companhias", defendeu.

Durante a entrevista, ele citou o caso do Teatro Sete de Abril, em Pelotas, fechado há mais de uma década. Belém trabalhou no local e comentou a emoção de presenciar uma homenagem à artista Berê Fuhro Souto na esplanada em frente ao teatro. "Fiquei pensando: o que sabemos sobre os espetáculos criados por ela? Sobre os artistas que passaram por aqui? Precisamos registrar essas histórias antes que se percam."

A ausência de registros, segundo ele, limita o acesso à história das artes cênicas locais. Por isso, o projeto também busca investigar companhias que já encerraram suas atividades, como o histórico Teatro Escola de Pelotas.

Ferramentas e aprendizados vindos da Europa

A experiência acadêmica de Fábio Belém em Portugal é a base para sua atuação atual. No mestrado e doutorado em Estudos de Teatro pela Universidade de Lisboa, ele trabalhou com arquivos de companhias fundadas após a Revolução dos Cravos. "Lá, os grupos têm acervos muito ricos, mas nem sempre organizados. Desenvolvemos ferramentas para tornar o arquivamento mais acessível."

Uma dessas ferramentas é um guia prático para companhias montarem seus próprios arquivos, que será apresentado no workshop. Belém defende uma visão expandida do conceito de arquivo, que inclui desde cartazes e gravações até entrevistas, objetos e memórias afetivas.

O pesquisador lembra que o digital também exige cuidado. "Não basta confiar que as redes sociais vão manter tudo salvo. É preciso atualizar mídias, organizar pastas, fazer backups e nomear arquivos. A memória digital também se perde se não for tratada com cuidado."

Um projeto coletivo para o futuro

O projeto "Arquivos e Memórias do Teatro Fronteiriço" está em fase inicial. A equipe já começou o mapeamento de companhias em cidades como Pelotas, Uruguaiana, Santa Maria e São Borja. Em Pelotas, a primeira companhia a ser aprofundada será a VSQ, com mais de 12 anos de atuação. "Queremos escavar, junto com as companhias, suas histórias, entendendo o que consideram relevante, como guardam suas memórias e o que querem preservar para o futuro."

O resultado será um livro em formato impresso e digital (e-book), previsto para o final de 2025. Belém destaca que a ideia não é entregar um diagnóstico fechado, mas sim abrir caminhos para outras pesquisas. "Queremos que nosso trabalho seja uma semente, um ponto de partida para que outras pessoas aprofundem o estudo da memória teatral no estado."

Colaboração da comunidade é parte essencial

Um dos objetivos do projeto é também contar com a colaboração direta da comunidade pelotense. A equipe pretende lançar uma campanha nas redes sociais para convidar pessoas que tenham registros históricos, fotografias, documentos, roteiros ou memórias sobre companhias de teatro da cidade. A ideia é reunir materiais que ajudem a reconstruir o percurso de grupos que marcaram a história local, mesmo os que já não estão em atividade.

Segundo Belém, essas contribuições serão fundamentais para formar uma rede de memória compartilhada. "Queremos ouvir quem viveu, quem assistiu, quem participou. Essas memórias individuais enriquecem o olhar coletivo sobre o teatro da nossa região", explicou. A proposta ainda está em fase de estruturação, mas será divulgada amplamente assim que operacionalizada.


Serviço

Workshop "Arquivos de Teatro e Memória", com Fábio Belém

Data e horário: Quarta-feira, 9 de julho, às 18h

Local: Curso de Teatro da UFPel, Rua Alberto Rosa, 62 - Bloco 2, sala 503. Entrada pela rua Álvaro Chaves.

Descrição: Encontro formativo sobre arquivos teatrais, memória das companhias e valorização do patrimônio cultural cênico da tríplice fronteira

Gratuito

Inscrições: Através do e-mail fmbelem@gmail.com ou WhatsApp (53) 98100-3050


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.



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