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A história de Pelotas para além dos casarões: infâncias negras reconstruídas resgatam o outro lado da cidade
Pelotas cultiva com orgulho sua imagem de cidade histórica: casarões preservados, ruas centenárias, heranças da elite charqueadora. Mas há memórias que permanecem à margem desses cenários — histórias de meninas e meninos pobres, muitas vezes negros, que passaram por instituições de acolhimento, viveram sob vigilância e foram educados para servir. A pesquisadora Jeane Caldeira, mestra e doutora em Educação pela UFPel, vem há 17 anos desenterrando essas narrativas apagadas, cruzando arquivos institucionais, documentos e jornais da cidade.
Em entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, Jeane compartilhou os caminhos que percorreu desde a iniciação científica até a elaboração de sua dissertação e tese. Os estudos centraram-se no Asilo de Órfãs São Benedito, fundado por uma mulher negra no início do século XX, e na forma como a imprensa pelotense retratava a infância pobre e negra entre 1910 e 1940. A conversa lança luz sobre a estrutura de exclusão social de um passado que ainda ecoa no presente.
Quando brincar virava “vadiagem”: a infância pobre nos jornais
Durante o doutorado, Jeane investigou como os jornais da cidade — especialmente o Diário Popular — se referiam às crianças pobres, muitas delas negras. Os termos usados eram diretos e estigmatizantes: “moleques”, “vagabundos”, “negrinha fujona”. Brincadeiras como o “jogo do osso” viravam caso de polícia, e a presença de meninos nas ruas era tratada como sinônimo de desvio e perigo.
“Esses discursos formavam opinião”, observou Jeane. “Imagina uma dona de casa recebendo o jornal e lendo aquilo. Aquela linguagem reforçava a ideia de que essas crianças eram um problema para a cidade.” Segundo ela, o termo “menor”, presente na legislação da época, já carregava um peso pejorativo e justificava medidas correcionais. “A lógica era formar corpos dóceis, úteis e submissos.”
Como contraponto, Jeane também analisou o jornal A Alvorada, publicação da imprensa negra que circulou por décadas e buscava construir outra imagem da população afrodescendente. “Eles destacavam casamentos, bailes, conquistas sociais. Era uma forma de valorizar a comunidade negra. Mas havia uma assimetria de poder: os jornais hegemônicos ainda ditavam o imaginário social dominante.”
Do São Benedito a Bagé: Luciana Lealdina e o legado pouco conhecido
A pesquisa de mestrado de Jeane foi dedicada ao Asilo de Órfãs São Benedito, fundado em 1901 por Luciana Lealdina de Araújo, uma mulher negra, filha de pessoas escravizadas. “Isso me impactou muito. Uma mulher negra fundando uma instituição naquela época… E ela conseguiu com apoio da elite negra local — maçons, jornalistas, intelectuais da época”, contou Jeane.
Luciana liderou o asilo por poucos anos. Em 1908, transferiu-se para Bagé, onde fundou o Orfanato São Benedito. Lá, é lembrada com carinho e respeito: “Muita gente a chama de ‘mãe Luciana’. O túmulo dela é tratado quase como um lugar sagrado. Recebe flores, cartinhas, pedidos. Já em Pelotas, sua presença nos documentos oficiais do asilo é mínima.”
A pesquisadora levanta hipóteses sobre esse apagamento: possíveis disputas internas, a chegada da congregação católica em 1902, e a centralização masculina na diretoria do asilo. “As mulheres apareciam nos cuidados, mas os homens nas atas e decisões. Por isso, o nome da Luciana pode ter sido minimizado.”
Meninas negras, dotes e asilos: o projeto de formação da obediência
O cotidiano das meninas no São Benedito era guiado por uma rotina disciplinada, religiosa e voltada à formação moral e doméstica. O asilo acolhia órfãs e também meninas cujas famílias não tinham condições materiais de criá-las — muitas vezes filhas de pais viúvos, que continuavam a visitá-las com afeto.
“Essas meninas eram alfabetizadas, aprendiam prendas domésticas, bordado, música. Eram preparadas para dois destinos possíveis: o casamento, com direito a dote e enxoval, ou o trabalho como empregadas em casas de família”, explicou Jeane. A educação oferecida era voltada à utilidade social esperada para a mulher negra pobre da época — obediente, prestativa, religiosa.
A pesquisadora também destaca que o Instituto São Benedito continua em atividade até hoje, e que é lembrado com respeito pela comunidade. “Muitas meninas negras ainda são atendidas lá. Isso não é uma crítica à instituição, mas um sinal de que as desigualdades raciais seguem estruturais na cidade. Ainda são as meninas negras que mais precisam desse tipo de acolhimento.”
Um momento marcante da pesquisa foi a entrevista com irmã Assunta, freira que atuou por muitos anos no instituto. “Ela compartilhou histórias muito emocionadas. Lembro de um caso de uma menina que faleceu e diziam que estava grávida, mas na verdade tinha um problema grave no coração. Era impossível fugir: os dormitórios eram no segundo andar, sempre vigiados. A irmã Assunta tinha muito carinho por aquelas meninas. Essa entrevista foi fundamental para minha dissertação.”
Memória viva e impacto no presente
A pesquisa de Jeane extrapolou os muros da universidade. Tornou-se referência para estudantes, movimentos sociais e pesquisadores de outras cidades. “Recebo contatos com frequência. Uma mestranda da UFRGS, por exemplo, me procurou porque também estava estudando a trajetória de Luciana em Bagé”, relatou. “Isso me emociona. É uma forma de essas histórias transitarem entre comunidade, academia e movimentos.”
Jeane também ressaltou o papel dos coletivos locais na disputa por memória e espaço. Citou o Odara, organização com a qual tem ligação desde jovem, e o CDD do Dunas, grupo cultural que enfrenta hoje dificuldades após um incêndio na sede. “Esses coletivos saem do bairro e ocupam o centro da cidade. Rompem com o lugar que foi historicamente negado. São fundamentais para que crianças e jovens negros possam acessar outros espaços e projetos de vida.”
Ela conclui com um convite: “Se alguém quiser estudar mais sobre a Luciana Lealdina, me chama. Ainda há muita coisa a descobrir. Eu tenho muita vontade de voltar a Bagé e seguir essa pesquisa. Sozinha não tive mais pernas, mas com parcerias, a gente caminha.”
Serviço
Entrevistada: Jeane Caldeira
Tema: Infância desvalida e institucionalização em Pelotas no século XX
Instituição: Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Contato: jeanecal@yahoo.com.br
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0429143837195691
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
Foto de capa: Lorenzo Bonone/RádioCom
Fotos no corpo do texto: Arquivo de Jeane Caldeira
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