“A gente não é o que vê, é o que dizem que somos” — entrevista com Letícia Schinestsck
“A gente não é o que vê, é o que dizem que somos” — entrevista com Letícia Schinestsck
“A gente não é o que vê, é o que dizem que somos.” A frase dita pela jornalista e pesquisadora Letícia Schinestsck sintetiza a tese central de seu novo livro, #Bodypositive, mas nem tão 'positive' assim: A discursivização do corpo no Instagram. Na obra, ela investiga como os discursos de aceitação corporal, ao entrarem na lógica das redes sociais, acabam reproduzindo novas formas de controle, exposição e violência simbólica — especialmente contra mulheres.
Letícia esteve no programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, nesta terça-feira (8), para falar sobre o lançamento do livro, que ocorre no dia 10 de julho na Livraria Vanguarda. Durante a conversa, ela abordou as transformações históricas na forma como os corpos são representados, a pressão por aceitação nas plataformas digitais e a necessidade urgente de regulação das redes. Com base em sua pesquisa de doutorado, a autora mostra que, no ambiente digital, o corpo não é apenas visível — ele é vigiado, categorizado e performado para ser aceito.
A construção do corpo como performance para o outro
Letícia explicou que o corpo, na lógica das redes sociais, é fragmentado e performado para atender à expectativa do outro. A representação online do “self”, segundo ela, é mediada por hashtags, ângulos e discursos que organizam o que pode ou não ser visto. “Não é mais só o corpo — é peito, bunda, barriga. É um corpo industrializado, que se oferece em partes ao olhar alheio”, comentou. A pesquisadora lembra que essa lógica afasta o indivíduo da experiência integral de ser um corpo e o transforma em produto de consumo e comparação.
A autora destacou como, mesmo nos movimentos que propõem aceitação, como o body positive, há um novo tipo de pressão. “Você tem que se amar, amar suas estrias, seu peito caído. Mas a gente não foi ensinado a se amar. Imposição de amor próprio também é violência simbólica”, afirmou. Para Letícia, o discurso aparentemente libertador acaba gerando mais angústia: quem não consegue “se aceitar” se sente culpado e inadequado, repetindo o ciclo de opressão que o movimento tentava combater.
Ela analisa como a participação em comunidades digitais de aceitação corporal exige uma espécie de selo de pertencimento. “A hashtag funciona como uma caixinha: se você diz que é #curve, por exemplo, você deixa de ser qualquer outra coisa. Você se classifica, se delimita.” Nesse processo, o corpo deixa de ser experiência íntima e passa a ser oferta pública — uma afirmação que precisa ser legitimada, curtida e validada pelo outro.
Entre o empoderamento e o adoecimento: os efeitos da validação digital
A pesquisadora revelou que, ao estudar postagens populares no Instagram sobre corpo gordo e peito caído, encontrou tanto manifestações de acolhimento quanto episódios de crueldade extrema. “Uma das mulheres contou que colocou em sua bio do Tinder que era gorda. Depois de um encontro, o homem disse que ela tinha mais era que se matar. Eu, como mulher, precisei acolher aquela dor”, relatou emocionada. Para Letícia, isso demonstra como as redes são ao mesmo tempo espaço de exposição e de agressão.
A própria lógica da plataforma reforça esse ciclo: “O algoritmo entende que, se uma menina posta uma foto e deleta em seguida, é o momento ideal para mostrar propaganda de produto de beleza. Isso é perverso”, afirmou, apontando que o ambiente digital estimula inseguranças para vender soluções. Ela ressalta que muitas vezes o que parece empoderamento é, na verdade, uma busca desesperada por aceitação.
Outro aspecto discutido foi o papel da audiência como força controladora. “É um teatro. A gente se apresenta esperando o elogio. E aí não é mais sobre quem eu sou, é sobre o que o outro diz que eu sou”, explicou. A expectativa de aprovação se torna tão central que molda decisões, gostos e até o consumo. A aparência se torna performance, e o olhar do outro, um espelho distorcido.
Corpo, história e mercado: como a cultura define a beleza
No livro, Letícia faz uma retomada histórica da relação social com o corpo, passando pelos gregos, romanos, períodos religiosos e momentos de rejeição ou exotização da diferença. Ela cita, por exemplo, a prática de exibir pessoas com deficiências em feiras de aberrações ou o uso do corpo mutilado no pós-guerra como símbolo assistencialista. “Esses corpos sempre estiveram à margem, ora como espetáculo, ora como piedade. Mas raramente como sujeitos plenos”, observou.
Hoje, segundo ela, vivemos o auge da fragmentação: o corpo pode ser modificado, vendido, parcelado e refeito. “Você pode comprar um novo nariz, fazer seguro do seu peito. O corpo virou bem de consumo”, comentou. Nesse contexto, a inclusão prometida pelo mercado — com araras “plus size” nas lojas — é, na prática, um reforço da segregação. “Não é inclusão, é separação. Está ali a parte dos corpos que não se encaixam no padrão.”
Letícia questiona também como o discurso da gratidão, do “se ame como você é” e do otimismo constante tem operado como ferramenta de silenciamento. “É o mesmo mecanismo do ‘gratiluz’. A gente é obrigado a estar bem, a ser grato, mesmo quando está em sofrimento. E isso é desumano”, afirmou.
A urgência de regular o que nos molda
Durante a entrevista, Letícia reforçou que não basta educação para enfrentar os danos causados pelas redes: é preciso regulação. “Hoje, se um conteúdo violento circula, você tem três pontinhos para denunciar e nada mais. Não há canais reais de responsabilização”, criticou. Ela defendeu que plataformas como Instagram e Facebook sejam responsabilizadas pelos conteúdos que monetizam — especialmente quando envolvem discurso de ódio, pedofilia ou incentivo à automutilação.
A jornalista lembrou que os jovens de hoje estão crescendo sob influência direta de algoritmos que não têm compromisso ético. “É muito pior do que deixar uma criança na rua. A internet está cheia de armadilhas, e a maioria dos pais nem sabe o que seus filhos estão consumindo.” Letícia trouxe exemplos concretos de como fotos aparentemente inocentes de crianças acabam em sites de pornografia sem qualquer controle.
Segundo ela, é um erro acreditar que o que vemos na nossa bolha é o reflexo do mundo real. “Quem impulsiona mais, aparece mais. E quem tem mais dinheiro geralmente são os discursos mais violentos, mais extremos.” Para Letícia, pensar políticas públicas e legislações para o ambiente digital é urgente — não apenas para proteger, mas para restituir dignidade e limites ao convívio online.
A palavra escrita como ferramenta de transformação
A obra de Letícia não foi pensada inicialmente para virar livro. Mas o convite da editora trouxe a possibilidade de tirar a pesquisa do ambiente acadêmico e levá-la ao público geral. “São temas que precisam sair da bolha. As pessoas falam sobre isso, mas muitas vezes sem propriedade. Então o livro tenta tornar acessível esse debate, mesmo sendo um trabalho técnico e metodológico”, explicou.
A autora destaca que seu maior objetivo é fazer com que a leitora questione os padrões internalizados. “Se uma pessoa parar e pensar ‘essa agressão que estou fazendo comigo mesma não é minha’, eu já cumpri meu papel”, disse. Para ela, reconhecer que os discursos que nos atravessam são construídos culturalmente é o primeiro passo para romper com a lógica de opressão.
Letícia também fez um alerta sobre o falso sentimento de proteção nas redes. “As plataformas não têm compromisso com o bem-estar. Elas são negócios, e negócios lucram com a nossa insegurança”, afirmou. A obra é um convite à consciência crítica e à resistência simbólica.
Serviço
Evento: Lançamento do livro #Bodypositive, mas nem tão 'positive' assim: A discursivização do corpo no Instagram
Data e horário: Quinta-feira, 10 de julho, das 19h às 21h
Local: Livraria Vanguarda – Shopping Pelotas
Autora presente: Letícia Ribeiro Schinestsck
Descrição: O livro investiga os paradoxos do movimento body positive, os efeitos da vigilância nas redes e a construção social do corpo feminino no ambiente digital.
Entrada: Gratuita
Atividades: Sessão de autógrafos, bate-papo com a autora e brinde de lançamento
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
Imagem: Ridley Madrid
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